Guerras têm o poder de mudar o rumo da História. Com mais frequência ainda, elas catalisam processos históricos já em andamento. Esse deve ser o caso do impacto da invasão da Ucrânia sobre a ordem internacional. A agressão russa acirra de forma trágica a disputa por influência global entre autocracias e democracias.
A queda do Muro de Berlim e a dissolução da União Soviética pareceram selar, nos anos 90, a consolidação da democracia liberal como modelo indisputável, no que o filósofo americano Francis Fukuyama chamou de “o fim da História”. Agora, a História voltou das férias na Europa (na Ásia, ela nunca entrou).
Quando a China aderiu ao capitalismo (ainda que “de estado”), nos anos 80, americanos e europeus acreditaram que a transição para a democracia viria como consequência natural. A conclusão vinha da aplicação de uma régua sociológica única, como se todas as sociedades tivessem o mesmo funcionamento, ignorando a importância dos aspectos culturais na dinâmica de um país.
Com base no confucionismo, os chineses têm mentalidade hierárquica, e associam a legitimidade do governante à prosperidade que ele lhes proporciona. Enquanto sentem que vivem melhor que seus pais, continuam obedecendo ao regime. Ao longo da história, as dinastias chinesas acabaram quando a vida piorou.
A China aprendeu a jogar pelas regras da globalização. Com mão de obra barata e regulações bem mais brandas, tornou-se o celeiro de manufaturados baratos do mundo. A gradual prosperidade conquistada dessa forma perpetuou o Partido Comunista no poder. Os protestos por democracia foram esmagados.
Em contrapartida, o deslocamento das indústrias dos Estados Unidos e da Europa para a China e outros países asiáticos instilou em fatias da população americana e europeia o sentimento inverso, de piora nas condições de vida. Empregos bem-remunerados com direitos trabalhistas na indústria deram lugar a contratos precários no setor de serviços.
A Rússia teve seu período de adesão à democracia liberal, na sua primeira década pós-soviética, sob o presidente Boris Yeltsin, nos anos 90. Esse breve namoro acabou com a chegada de Vladimir Putin ao poder, no ano 2000.
Durante anos, Putin enganou o mundo, mantendo economistas liberais como seus assessores no Kremlin. Era uma cortina de fumaça. Nenhuma das recomendações desses assessores era seguida, enquanto Putin substituía os novos empresários de todos os setores lucrativos na Rússia — exilados, presos ou mortos — por pessoas de sua confiança, na maioria das vezes oriundas do serviço secreto, como ele.
Desde então, Putin executa um exitoso plano de perpetuação no poder. A breve experiência da Rússia com a democracia liberal — dez anos de intervalo em um milênio de poder absoluto — deu lugar a uma cleptocracia, que dilapida as riquezas do país. Para mantê-la, diante do descontentamento popular crescente, a cortina de fumaça se torna uma nova cortina de ferro totalitarista.
Putin vislumbrou no descontentamento com a globalização nos EUA e na Europa uma oportunidade para desestabilizar as democracias liberais a ela associadas. O Kremlin incentivou hackers russos a atacar empresas americanas e europeias, e montou operações como a que invadiu o banco de dados da campanha presidencial democrata em 2016 e de disseminação de teorias conspiratórias a serviço de teses iliberais.
O terreno estava fértil para a semeadura do populismo autoritário e conservador, e a Rússia participou desse cultivo. Enquanto líderes como Donald Trump menosprezavam e desafiavam as instituições democráticas, a China e a Rússia, entre outras autocracias, procuravam se auto-afirmar como alternativa mais “eficaz”. Muita gente, por diferentes razões, incluindo o antiamericanismo enraizado nas elites intelectuais brasileiras, embarcou nessa.
Agora, Xi Jinping retribui esses serviços prestados por Putin, e sai em seu socorro, enquanto a Rússia é isolada por sanções adotadas pelas 30 economias mais avançadas do mundo, com exceção da China, da Índia, grande compradora de armas russas, e do Brasil, cuja diplomacia coloca tradições e interesses acima de valores.
A brutalidade da invasão da Ucrânia força agora muitas pessoas complacentes com o populismo autoritário a reconhecer a superioridade moral da democracia liberal. Outras continuam recalcitrantes, e ainda lançam mão das justificativas estapafúrdias do Kremlin para massacrar os ucranianos e destruir seu país.
A primeira Guerra Fria foi caracterizada pelas chamadas guerras por procuração, nas quais EUA, União Soviética e, alguns casos, a China, enfrentavam-se indiretamente, enviando armas e soldados para países alinhados com cada bloco combaterem seus inimigos.
Ao ser pressionado por Joe Biden a não fornecer ajuda econômica e militar à Rússia, Xi retrucou que os EUA precisam parar de incentivar a independência de Taiwan. Num sinal de que não pretendem negociar os fundamentos de sua política para a China, a Casa Branca anunciou depois sanções contra autoridades chinesas acusadas de perseguir ativistas dos direitos humanos dentro e fora do país.
A invasão da Ucrânia catalisou a polarização político-ideológica entre democracias e autocracias. E deu início a uma segunda Guerra Fria, na qual a Rússia e, talvez no futuro próximo, a China, travam uma guerra econômica, cibernética e também uma guerra real por procuração com os Estados Unidos, Europa, Japão, Coreia do Sul, Austrália e outros aliados.
A China não está pronta para abrir mão das tecnologias nem dos mercados desses países. Daí a necessidade de os chineses se esmerarem na ambivalência estratégica, na qual são mestres. Mas até para eles as divergências de objetivos com o Ocidente ficaram difíceis de esconder.
fonte: CNN