Cinco anos se passaram desde 11 de março de 2020, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a covid-19 uma pandemia. No dia seguinte (12), Pernambuco confirmava os primeiros casos da doença. "Quando isso ocorreu, já sabíamos que seria muito duro o que estava por vir", disse em entrevista, nesta terça-feira (11), o médico cardiologista André Longo, 53 anos.
Ele foi secretário de Saúde de Pernambuco de 2019 a 2022. Ao longo dos 55 minutos da nossa conversa intensa, logo relembrei a máxima de que a covid-19 nos testou ao limite e que, por isso, nunca mais seremos os mesmos.
Em vários momentos desta entrevista, a voz de André Longo embargou. Ele se emocionou ao relembrar a parceria com o ex-governador Paulo Câmara, ao reviver o impacto econômico do lockdown e, principalmente, ao falar da sua própria fragilidade quando adoeceu com covid - mas, ainda assim, seguiu firme na gestão da crise.
Porta-voz incansável durante a pandemia, ele sabia que todo o Estado o aguardava diariamente, via YouTube, para ouvir as recomendações nas coletivas de imprensa.
E, nos bastidores, ele enfrentava uma verdadeira guerra. A corrida para a abertura de leitos era tão intensa que, em vários momentos naquele início de pandemia, ele dizia que "trocávamos a roda com o carro em movimento". Era uma das metáforas frequentes, em seus pronunciamentos, para descrever situações em que é preciso fazer ajustes críticos enquanto algo já está em andamento, sem tempo para pausas.
"O desafio era gigantesco, mas Pernambuco montou a maior rede de saúde da sua história para enfrentar o vírus", destaca André Longo, hoje diretor-presidente da Agência Brasileira de Apoio à Gestão do SUS (AgSUS).
Nesta entrevista à jornalista Cinthya Leite, ele revisita os bastidores do enfrentamento à covid-19, as decisões difíceis e o legado que a pandemia deveria ter deixado - mas que, segundo ele, muitos insistem em esquecer.
JC - No momento em que a covid-19 começou a se expandir pelo mundo, qual foi o seu primeiro pensamento como gestor à frente da Saúde em Pernambuco? Quando percebeu a real dimensão do que estava por vir?
ANDRÉ LONGO - Quando a pandemia de covid-19 começou em 2020, eu já estava há um ano como secretário de Saúde de Pernambuco. Já havia feito todo um planejamento para os anos seguintes, mas, de repente, tudo precisou ser revisto. A pandemia chegou rápido e com muita força a partir de março, e não sabíamos exatamente o que estava por vir.
Foi só quando vimos os sistemas de saúde pelo mundo colapsando, um a um, que tomamos consciência da gravidade do que estava acontecendo. No início, tínhamos poucas informações. Mas quando a crise atingiu países como Itália, Inglaterra e França, percebemos que não seria apenas um problema sanitário e que os impactos sociais e econômicos seriam devastadores.
JC - Como foi receber a notícia dos primeiros casos de covid-19 em Pernambuco? Qual o sentimento naquele momento?
ANDRÉ LONGO - Quando confirmamos os primeiros casos, em 12 de março de 2020, já sabíamos que seria duro o que estava por vir. Nossa meta, naquele momento, era atrasar a transmissão comunitária no Estado (o que foi confirmada cinco dias depois, 17 de março).
Os primeiros casos de covid-19, no Estado, foram importados e começaram a ter atendimento na rede privada. Eram pessoas que haviam viajado para fora do País.
Infelizmente, não tivemos o apoio necessário do governo federal. Informação é vital em uma crise como a da covid, e a omissão federal expôs gestores e governadores, que tiveram que agir sozinhos.
Entre março e abril de 2020, a crise no Ministério da Saúde culminou na saída do ministro (Luiz Henrique) Mandetta, e o governo optou pelo negacionismo. O Brasil ficou sem um comando central na pandemia, o que resultou em um dos piores desempenhos mundiais no enfrentamento à covid-19.
O diferencial de Pernambuco no enfrentamento à pandemia foi termos um comando unificado, um esforço coordenado para enfrentar uma crise que extrapolava a saúde pública.
Em Pernambuco, seguimos as orientações das autoridades sanitárias internacionais, como a Opas (Organização Pan-Americana da Saúde), e traçamos nosso próprio caminho.
Não podemos esquecer que os trabalhadores da saúde foram a linha de frente dessa batalha. Eles exerceram um papel indispensável, trabalharam incansavelmente para salvar vidas, muitas vezes enfrentando jornadas exaustivas.
JC - Qual foi o maior desafio que o senhor teve que enfrentar, na gestão da saúde pública do Estado, no auge da pandemia?
ANDRÉ LONGO - O desafio de abrir leitos, sem dúvidas. Foi um desafio enorme. Quando assumi a gestão, em 2019, a previsão era abrir 100 leitos de terapia intensiva (UTI). Mas, com a pandemia, refizemos esta meta inicial, que passou para 600 leitos. Mas esse número logo se mostrou insuficiente. Chegamos a mil leitos de UTI ainda em 2020; e, em 2021, atingimos 1.831 leitos de UTI abertos em Pernambuco.
Ainda no começo da pandemia, em 2020, fizemos a requisição administrativa do Hospital Alfa (em Boa Viagem, Zona Sul do Recife), abrimos todos os leitos possíveis, contratamos todos os profissionais disponíveis e mobilizamos recursos como nunca antes. Não posso deixar de citar que a Prefeitura do Recife teve um papel fundamental ao abrir hospitais de campanha.
Outro ponto que tivemos que enfrentar foi a dificuldade enorme na aquisição de insumos – luvas, respiradores, tudo era escasso. Além disso, no início da pandemia, a falta de testes foi um grande obstáculo. Com a demanda elevada em todo o mundo, não havia exames disponíveis em quantidade suficiente para diagnosticar a população (isso dificultou rastreamento da transmissão e adoção de medidas mais precisas para conter o vírus).
JC - Pernambuco adotou medidas rígidas em vários momentos e, por isso, o senhor era criticado ao ser porta-voz dessas restrições. Como era equilibrar as decisões entre ciência, política e economia?
ANDRÉ LONGO - O então governador Paulo Câmara sempre prezou pela ciência e foi um dos primeiros a adotar medidas restritivas, o que gerou desgastes, mas era necessário.
Enfrentamos muitas dificuldades, e uma delas foi lidar com a narrativa negacionista do governo federal. Pernambuco, no entanto, seguiu firme, com adoção de medidas baseadas na ciência. Uma das decisões mais difíceis que tomei foi decretar o lockdown.
A circulação de pessoas precisava ser reduzida para conter a transmissão do vírus, mas o impacto econômico foi brutal. Me marcou muito ver as enormes filas na Caixa Econômica, fruto da falta de organização federal. Ainda assim, o lockdown de 15 dias foi essencial para diminuir a circulação do vírus naquele momento crítico.
JC - Se pudesse voltar no tempo, há algo que faria diferente na condução da crise?
ANDRÉ LONGO - Se hoje eu pudesse rever alguma decisão, seria o tempo de fechamento das escolas. Estudos recentes mostram que era possível reabri-las antes. Na época, enfrentamos dificuldades para equilibrar a volta das aulas entre escolas públicas e privadas, que tinham condições estruturais muito diferentes. Foi um dilema difícil de resolver.
JC - Existe um André Longo antes da covid-19 e outro depois da pandemia?
ANDRÉ LONGO - A pandemia foi um dos maiores desafios da minha vida. Me emociono ao lembrar das longas jornadas de trabalho no Palácio do Campo das Princesas (sede administrativa do poder executivo de Pernambuco). Chegava cedo, antes das 7h, e não tinha hora para sair. Era depois da meia-noite, de 1h da manhã... Minha família me deu muito apoio, mas foi um período difícil.
Eu mesmo adoeci de covid-19, em maio de 2020, assim como Paulo Câmara. Ambos no mesmo período. Tive que coordenar a crise remotamente, por videoconferência, e senti na pele o medo e a incerteza. Mesmo assim, segui com dedicação integral ao enfrentamento.
Não tenho dúvidas de que sou um profissional antes da covid-19 e outro depois dessa pandemia. Foi um aprendizado imenso, que me tornou mais experiente na gestão de crises.
JC - E o senhor estava diuturnamente ao lado da imprensa...
ANDRÉ LONGO - A comunicação foi um dos pilares da nossa estratégia. Fizemos coletivas diárias, muitas vezes mais de uma no mesmo dia, para garantir transparência e orientar a população.
A emoção maior veio no dia 19 de fevereiro de 2021, quando aplicamos a primeira vacina em Pernambuco, no Hospital Universitário Oswaldo Cruz (Huoc). Foi um sopro de esperança, apesar dos entraves federais.
Por falar em imunização, Pernambuco teve uma das menores taxas de mortalidade materna em 2021, porque decidimos fazer a vacina das gestantes com a Pfizer (quando a da AstraZeneca foi suspensa para esse público), contrariando uma orientação do Ministério da Saúde. Nosso comitê de vacina foi corajoso e salvou vidas.
JC - Após tudo o que enfrentamos, o senhor acredita que o Brasil está realmente preparado para futuras epidemias e pandemias? Qual lição essencial não podemos esquecer desse período?
ANDRÉ LONGO - O que me preocupa é que, apesar de tudo, vejo que muitas pessoas esqueceram os aprendizados da pandemia. Higienização das mãos, cuidados ao apresentar sintomas gripais, uso de máscara quando necessário: tudo isso foi banalizado.
Pouquíssimas pessoas hoje fazem teste de covid-19. Essa despreocupação é alarmante, porque sabemos que novas epidemias e pandemias virão. Deveríamos ter assimilado melhor as lições deixadas por essa tragédia.
Mesmo com todas as dificuldades, tenho muito orgulho da resposta que Pernambuco deu à pandemia. Montamos a maior rede de apoio da nossa história e protegemos muitas vidas. O legado desse período precisa ser lembrado e valorizado, para que estejamos sempre preparados para os desafios do futuro.