A raiva é ré no tribunal social. Sobre sua cabeça pesa a responsabilidade pelo fracasso de incontáveis relações e projetos.
Os processos imputados a ela estão sempre manchados de culpa, vitimização, ressentimento ou vingança.
Ao longo dos séculos, e ainda hoje na nossa sociedade, há quem prefira e aconselhe reprimi-la, sobretudo quando se é mulher.
Não à toa, a lista moral dos mais sérios desvios de conduta, os sete pecados capitais, a inclui.
As alegações da acusação costumam ser fortes, e, não raro, bastante compreensíveis. Mas hoje eu advogo a seu favor.
Faço isso não empiricamente, mas, sim, depois de ouvir os argumentos de quem aprendeu a conviver com ela, reconhecer e usufruir do seu lado bom, ou melhor, essencial.
Eu mesma já a reprimi, apontei meu dedo inquisidor muitas vezes. Mas conversar com as testemunhas abriu meus olhos e agora posso afirmar convicta da minha tese de defesa: a raiva não é só boa como necessária.
É talvez a emoção mais mal-interpretada do nosso repertório sentimental, julgada pelo senso comum apenas sob a perspectiva do estilhaço que, sim, ela pode causar – e causa muitas vezes. Mas a raiva é e faz bem mais que isso.
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"A raiva é a energia da mudança. É uma emoção imperativa, que manda agir. É o veículo que transforma a indignação em diálogo", diz Alexandre Coimbra Amaral, escritor, psicólogo, mestre em psicologia pela PUC do Chile e consultor em saúde mental.
"Não existe conversa difícil sem raiva, porque a raiva não nos deixa desistir dos nossos valores, e nos move em direção a eles. O que não quer dizer que a agressividade violenta e desrespeitosa precise tomar o controle".
O problema é atrelar a reputação da raiva apenas aos rompantes explosivos que erodem relações. Nada justo.
A raiva faz parte de um conjunto de emoções que aciona nosso sistema cerebral motivacional defensivo, recrutado em contextos de ameaça à nossa integridade física ou psicológica e que desperta o ímpeto de combate ou fuga.
O medo também é uma emoção desse pacote, assim como o nojo.
"Ao contrário de outras emoções do sistema defensivo, que geram uma ação repelente ou inibitória, na raiva parece haver um forte componente de aproximação, ou seja, a intenção de chegar perto do que a disparou para agir", diz Thais Gameiro, neurocientista e sócia-fundadora da Nêmesis, empresa especializada em neurociência comportamental para o mercado.
Thaís diz que o fato de o gatilho da raiva normalmente ser algo bem tangível, quase sempre uma pessoa contribui para esse fenômeno.
"A raiva é um sinal vermelho de que uma necessidade relevante foi negligenciada, mas que algo ainda pode ser feito. Quando não enxergamos meios de intervir, outras emoções tendem a nos assolar, como o medo, a frustração ou a tristeza", explica.
A questão é que a maioria de nós, quando sente raiva, tende a seguir por dois caminhos sombrios: reprimir o sentimento, dada a má reputação que ele tem; ou focar no erro do outro, para culpar e punir.
No primeiro caso, perde-se a oportunidade de se conhecer e mover em direção à mudança necessária, além de ruminar o gosto ruim da sensação de ter perdido o bonde, de não ter feito nada quando importava e era tempo.
No segundo, corre-se o risco de cair na malha tóxica da raiva, quando ela sequestra o racional e nos faz agir sem pensar, encharcados de ódio, marionetes do cortisol, adrenalina e noradrenalina – hormônios e neurotransmissores relacionados à emoção.
Quem já protagonizou ou presenciou um arrebatamento explosivo de raiva, a lava de um vulcão engolindo tudo?
Quando isso ocorre é porque a região límbica cerebral, onde mora o sistema motivacional defensivo, já tomou controle, ofuscando o córtex pré-frontal, responsável pela reflexão. Evitar que isso aconteça requer equilíbrio, inteligência emocional.
"Primeiro, é preciso ter coragem para dizer que se está com raiva, usar mesmo a palavra. Há pessoas que a evitam até no vocabulário, mas trazê-la para o campo da linguagem é importante. É preciso também separar o gatilho da raiva da sua causa real: a interpretação pessoal a respeito do que o outro fez ou disse. E isso está relacionado a reconhecer qual necessidade foi negligenciada, porque a raiva tem a ver com isso, e não com o outro", diz Vivian Rio Stella, professora de cursos de Comunicação Não Violenta (CNS) e idealizadora da VRS Academy, empresa de cursos e treinamentos para pessoas e organizações.
"Toda vez que sentimos raiva, de fato, estamos sem conexão com nossas necessidades", endossa Marshall Rosenberg (1934-2015), psicólogo norte-americano, doutor em psicologia clínica e idealizador das técnicas da CNV, em seu livro "O Surpreendente Propósito da Raiva" (Palas Athena).
Por isso, reprimi-la é perder contato consigo, é ignorar um atalho poderoso e bastante claro (todo mundo sabe quando está com raiva) na identificação do que mais importa.
Uma vez mais conscientes da necessidade não atendida, podemos respirar, refletir e tomar distância para transformar a indignação na conversa que promove mudança.
Uma conversa que certamente não será fofa, haverá raiva nela, mas não a colérica, que destrói, e sim a que transforma e corrige rotas.
"Eu sinto raiva o tempo todo." Li esta frase na boca da última pessoa no mundo que imaginaria irada. Ela foi dita por Mahatma Gandhi (1869-1948), advogado e líder espiritual indiano, a seu neto, Arun Gandhi, autor de "A Virtude da Raiva" (Sextante).
O livro registra a história de como Mahatma Gandhi lidou com a raiva ao ver grandes indústrias têxteis da Grã-Bretanha sufocando a produção de tecido artesanal na Índia, levando todo o algodão para processá-lo e vendê-lo de volta aos indianos por um preço inacessível.
Arun conta que o avô começou a fiar para encorajar cada família a fazer o mesmo e ser autossuficiente. A partir da ira, construiu um movimento positivo e transformador, ao encontro da sua necessidade e da do coletivo.
Se o pacifista Mahatma Gandhi se inflamou, talvez seja a hora de você, caro leitor, sentir-se autorizado. Mas você, amiga leitora, tem um caminho diferente a percorrer.
"A raiva é atravessada pela questão de gênero. Um homem com raiva é ainda visto como alguém que tem potência e ousadia. A expressão do poder masculino permanece autoritária, usando a raiva para provocar medo e respeito. Mas, na mulher, ela aparece como algo que dificulta o vínculo", compara Alexandre.
À medida que a mulher se empodera ganhando assertividade, ela deixa de omitir indignação e se choca contra um tecido social que ainda não sabe lidar com isso.
"É comum vermos a raiva legítima de uma mulher interpretada como loucura, histerismo", diz o psicólogo.
Refletindo sobre isso, talvez a indignação feminina seja, em si, uma expressão forte do poder transformador da raiva em nossa sociedade.
Não da sua forma colérica, mas da que faz pensar e pavimenta mudanças.
Como diz Alexandre, "é urgente começar a atribuir à raiva momentos transformadores da nossa vida. Quem a incrimina é quem tem medo de mudar". Faz sentido para você?
Por Vanessa Costa – revista Vida Simples
Jornalista, escritora e, agora, advogada da raiva que transforma e faz crescer.