O fim de um relacionamento nem sempre ocorre de forma amigável para ambas as partes. Em alguns casos, o período posterior pode ser marcado por todo tipo de ameaça e agressão, sobretudo contra as mulheres. As denúncias do crime de stalking (perseguição), incluído no Código Penal em 2021, cresceram no País no último ano e são um alerta à saúde física e mental dos autores e das vítimas.
A nova edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública aponta que 77.083 mulheres prestaram queixas de crime de stalking em 2023. A média é de pelo menos oito denúncias a cada hora. Além disso, houve aumento de 34,5% em relação ao ano anterior, quando 57.294 vítimas procuraram a polícia para pedir socorro.
"Esse dado é especialmente relevante por ser crime preditor de outras violências, como o feminicídio", alertou Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, responsável pelo Anuário.
Moradora de Sairé, município do Agreste de Pernambuco, Ana (nome fictício) viveu alguns dos piores meses de sua vida depois de que decidiu encerrar o casamento, que durou três anos. O ex-marido, de 28 anos, passou a ameaçá-la constantemente, a partir de perfis falsos nas redes sociais e mensagens excessivas. Também aparecia em quase todos os lugares frequentados por ela.
A vítima passou a ter crises de ansiedade e de pânico. Até o comércio de sorvetes que ela administrava precisou ser fechado provisoriamente, no início deste ano. Em abril, segundo a investigação policial, o ex-marido matou o cachorro dela com uma cerca envenenada e disse que a ex-mulher seria a próxima.
No começo de maio, ele foi preso preventivamente. Mas, no mesmo mês, a Justiça concedeu a liberdade provisória, mediante uso de tornozeleira eletrônica.
As ameaças não pararam. Novos perfis falsos no Instagram e no WhatsApp foram criados, vinculando a ex-mulher à prostituição e à plataformas de conteúdos pornográficos. A situação se agravou quando ele passou a enviar motoqueiros, com frequência, até o endereço da casa dela para mandar recados de que homens estavam atrás dela.
Em junho, o criminoso afirmou, em mensagem à ex-mulher enviada pelo Instagram, que ela iria ser morta. A vítima novamente procurou a polícia.
A investigação contou com o apoio do Núcleo de Inteligência da Polícia Civil de Pernambuco. Após a confirmação de que ele era responsável pelos perfis falsos, houve a representação por uma nova prisão preventiva por descumprimento de medida protetiva de urgência, invasão de dispositivos eletrônicos, maus-tratos contra o cachorro da vítima e stalking.
Em 20 de junho, ele foi preso novamente. Mas as marcas da violência psicológica permanecem muito presentes na rotina de Ana, que agora passa por tratamentos em saúde mental para tentar seguir adiante.
Os nomes dos envolvidos foram preservados em respeito à vítima.
A psicóloga Amithia Pereira, especialista em terapia cognitivo comportamental, explicou as principais características de quem comete o crime de stalking.
"Trata-se do ato de alguém perseguir outra pessoa de forma ameaçadora, invasiva e constrangedora. Tudo isso com o objetivo de chamar atenção e deter o controle. Uma característica-chave no stalker é o fato de ele não conseguir lidar com perdas e frustrações. Então esse comportamento é uma tentativa doentia de ter, ou voltar a ter, o controle da vida da outra pessoa. Eles impõem um tipo de contato por meio da ameaça, perseguição e, em alguns casos, proporcionam violência física e psicológica", disse.
O médico psiquiatra e professor universitário Dennys Lapenda Fagundes pontuou que, em muitos casos, os autores do stalking têm dificuldade nos relacionamentos.
"Normalmente são pessoas que já têm algum quadro psiquiátrico ou podem 'abrir' o quadro psiquiátrico por uma condição de relacionamento que gerou, por exemplo, esse gatilho. Elas também podem apresentar alguns sinais, alguns traços: são pessoas que têm um caráter de organização mais perfeita, pessoas que têm formações profissionais importantes. São pessoas que não aceitam erros, que têm dificuldade de relacionamento", pontuou Fagundes, que é doutorando em neuropsiquiatria pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Amithia Pereira ressaltou que, em alguns casos, o stalker apresenta transtornos delirantes persistentes. "Ou ainda, nos casos mais comuns, transtornos ligados ao uso de substâncias como álcool e outras drogas."
O psiquiatra reforçou, no entanto, que não necessariamente a pessoa que cometeu o crime de stalking tem algum transtorno psiquiátrico.
"É preciso avaliar com calma. Mas às vezes alguma característica de personalidade pré-mórbida (que antecede uma doença) pode favorecer a ela ter esse comportamento de perseguição. Às vezes o homem já tem algum quadro de transtorno mental e isso acaba se agravando, dependendo de como o relacionamento foi elaborado com a companheira. Normalmente esses crimes de stalking abrem espaço para relações de violência, de feminicídio ou de homicídio - no caso dos homens serem as vítimas", detalhou Dennys.
Na madrugada do último domingo (28/07), a técnica em enfermagem Maria do Carmo Oliveira, de 34 anos, foi morta a tiros pelo ex-marido, o cabo da Polícia Militar Lindinaldo Severino da Silva, 39, na boate Lounge Music, localizada no bairro de Piedade, Jaboatão Guararapes, no Grande Recife.