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Desqualificar vítimas de crimes sexuais é inconstitucional

Foi com base em conjunturas verídicas que o Plenário do STF retomou o julgamento da ADPF 1107 em que se discutem práticas de desqualificação

Publicada em 03/07/2024 às 09:07h - 52 visualizações

por GISELE MARTORELLI


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A alegação da vítima de ter sido submetida a violência de tal monta será paulatinamente soterrada por suspeitas plantadas - MARCELLO CASAL JR /AGÊNCIA BRASIL  (Foto: )

Na cenografia despojada estão apenas algumas cadeiras empilhadas, formando uma espécie de pirâmide. Um painel de madeira reveste o fundo do palco, mimetizando a atmosfera solene de um tribunal. Vestida com beca preta, Débora Falabella vive seu primeiro papel solo no teatro como a advogada Tessa Ensler, uma jovem profissional em ascensão. Na peça Prima Facie, com direção de Yara de Novaes sobre texto da dramaturga australiana Suzie Miller, a atriz entrega uma performance de alto nível. Já nos primeiros minutos, transmite à plateia a adrenalina que a invade quando assume a defesa de quem contratou seus serviços. Seus movimentos têm a precisão e a suavidade de uma caçadora habilidosa, uma especialista na arte de aguardar o momento certo para agir.

O depoimento que vier a desfavorecer seu argumento passará a ser neutralizado por uma sequência de perguntas desconcertantes. Tal método de inquirição beneficiou inúmeros clientes, inclusive aqueles acusados de abusos sexuais. A alegação da vítima de ter sido submetida a violência de tal monta será paulatinamente soterrada por suspeitas plantadas: “incentivou”, “concordou”, “estimulou”, “provocou”, “deu a entender”. A advogada celebra a vitória que sabe ser iminente. Para o réu, a absolvição.

Se na primeira metade do monólogo vemos as técnicas de arguição como ferramentas úteis à defesa, em sua segunda parte, Tessa Ensler se desloca da posição de operadora do Direito para a de vítima de estupro. Com a reviravolta, a trama ganha em velocidade e impacto ao nos entregar uma mulher, antes vestida com o manto do profissionalismo, agora despida em sua vulnerabilidade de violentada. Tessa e um colega de trabalho haviam começado um flerte, que caminhou para maior intimidade, mas cruzou fronteiras que jamais devem ser ultrapassadas: a consumação do sexo sem consentimento.

Agora como elemento-chave na peça acusatória, a protagonista, que de algoz virou alvo, precisa responder perguntas que expõem a sua conduta sexual, com insinuações que têm como única finalidade desacreditar a sua versão dos fatos. A consternação que emana da cidadã Tessa nunca encontrou correspondência na Tessa advogada. É palpável sua perplexidade diante da impassibilidade do magistrado, permitindo que o advogado de defesa devasse a sua vida, ignorando o único critério admissível em contextos como o dela: o não é não. A sala onde transcorre o julgamento, antes um oásis seguro para Tessa, agora se assemelha a uma arapuca que se fecha cada vez mais sobre sua pessoa.

Foi com base em conjunturas verídicas, correspondentes àquelas representadas pela personagem ficcional, que, no dia 22 de maio de 2024, o Plenário do STF retomou o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 1107), em que se discutem práticas de desqualificação de mulheres vítimas de violência sexual. Ficção e realidade convergem ao expor uma situação que ocorre corriqueiramente, na “vida real”, dentro das cortes de todo o Brasil: uma retórica que retira da mulher o direito a dizer não, a qualquer momento, frente a um avanço sexual indesejado.

Com relatoria da ministra Cármen Lúcia, a ação, protocolada pela Procuradoria-Geral da República (PGR), pede que a Corte proíba questionamentos sobre a vida sexual pregressa da vítima, bem como de seu modo de vida, durante a apuração e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual. A ADPF visa o controle de constitucionalidade com o objetivo de evitar ou reparar lesões causadas por atos que desrespeitem preceitos fundamentais da Constituição Federal de 1988. Para a PGR, é flagrantemente inconstitucional o viés discriminatório estabelecido por linhas de inquirição que buscam desviar o foco dos crimes contra a dignidade sexual redirecionando-o a um julgamento moral da vítima, cabendo ao Estado, portanto, o dever de coibir o uso de estratégias similares.

Em seu voto, a ministra Cármen Lúcia foi certeira ao apontar a inaceitável prática da vitimização secundária, diretamente relacionada com o padrão de perguntas que forçam a mulher que sofreu violência sexual não apenas a revisitar incessantemente as circunstâncias traumáticas, mas a duvidar de sua própria contribuição na sequência de eventos nefastos. Permitir que, num tribunal, seja empregada uma linha de questionamento que implica em coautoria, o “fazer por merecer”, é retroagir em avanços tão duramente conquistados. É devolver a mulher a uma condição de inferioridade e não de emancipação e igualdade.

O pedido da PGR, acatado pelo voto da relatora, é que as partes e seus advogados se eximam de mencionar o histórico da vida sexual ou estilo de vida da vítima durante o processo, cabendo ao juiz interromper a prática e desconsiderar tais alegações no curso do julgamento. Espera-se que, com a decisão, audiências e julgamentos que lidam com uma matéria tão avassaladora quanto os crimes que atentam contra a dignidade sexual tornem-se um lugar de acolhimento e não de revitimização.

Gisele Martorelli, advogada




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