O forte barulho e a quantidade de tiros assustaram os moradores do bairro de Piedade, em Jaboatão dos Guararapes, na Região Metropolitana do Recife (RMR). Nas primeiras horas do dia 26 de abril deste ano, a Rua Novo Horizonte foi tomada pelo medo e por manchas de sangue espalhadas por uma das casas. Lá, dois homens de 18 e 27 anos e uma mulher, de idade não informada, foram executados a tiros.
As três vítimas fazem parte de uma lista de 100 pessoas atingidas por balas em residências localizadas na RMR somente entre 1º de janeiro e 3 de junho deste ano, o que demonstra que muitos dos tiros têm endereços certos. O levantamento é do Instituto Fogo Cruzado, especializado em dados da violência armada no País. Chama a atenção o fato de o número ser bem superior ao registrado, no mesmo período, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, onde 14 pessoas foram baleadas. A variação foi de 614%.
A cientista social e coordenadora-executiva do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (Gajop), Edna Jatobá, pontuou que a sociedade tende a achar que o Rio de Janeiro é mais violento, devido à cobertura da imprensa muito focada na quantidade de tiroteios nas comunidades e casos de balas perdidas. Mas o mapeamento demonstra que, em casa, a insegurança pode ser maior na RMR.
"Dentro das residências não há lugar seguro para as pessoas viverem no Recife e na Região Metropolitana. Prova disso é esse número tão alto quando comparado com o Rio de Janeiro, por exemplo. Possivelmente, muitos desses crimes foram premeditados. Os algozes sabiam onde essas vítimas residiam. A gente imagina que parte das vítimas já tinha recebido ameaças ou parte desses crimes foram planejados com alguma antecedência", avaliou Edna Jatobá.
"Por serem crimes premeditados, a gente também esperava que, com alguma antecedência, a inteligência e as forças policiais conseguissem agir de maneira articulada para evitá-los. ,Mas, infelizmente, a gente segue contando os mortos", completou.
A quantidade de pessoas mortas em residências no Grande Recife é superior em todas as localidades onde o Instituto Fogo Cruzado atua. A Região Metropolitana de Salvador (BA), por exemplo, somou 56 pessoas baleadas entre janeiro e o começo de junho. Já na Grande Belém, 37 pessoas foram atingidas pelos tiros em casa. (Veja arte com detalhes mais abaixo)
A Bahia, inclusive, lidera entre os estados do País com maior número de mortes violentas intencionais - segundo dados atualizados mensalmente pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública. No primeiro quadrimestre deste ano, 2.178 pessoas foram assassinadas.
Das 100 pessoas baleadas em casas no Grande Recife, o Instituto Fogo Cruzado identificou que 83 morreram. O município de Jaboatão dos Guararapes liderou em número de registros. Ao todo, 28 vítimas foram atingidas por tiros. Somente três sobreviveram.
Na residência onde ocorreu o crime mencionado no início desta reportagem, a polícia encontrou uma espingarda calibre 12, duas pistolas, um tablete de crack, seis balanças de precisão, munições, dois rádios e quatro celulares, o que reforçou a tese de que o crime teve ligação com o tráfico de drogas. Havia ainda sinais de arrombamento na porta, indicando que as vítimas foram surpreendidas pela ação rápida dos assassinos.
Segundo dados recentes da Secretaria Estadual de Planejamento, Gestão e Desenvolvimento Regional (Seplag), a maioria das vítimas de homicídio em Pernambuco tinha envolvimento com atividades criminais, sobretudo com o tráfico de drogas. Das 988 pessoas mortas entre janeiro e março deste ano, 732 (ou seja, 74%) se enquadravam nesse perfil.
Jaboatão dos Guararapes tem chamado a atenção da polícia por causa do avanço da criminalidade. Nos últimos anos, o número de homicídios cresceu em meio à guerra entre facções rivais pelo domínio do tráfico. A Trem Bala, que domina o comércio ilegal em municípios vizinhos, como o Cabo de Santo Agostinho e Ipojuca, tem ocupado mais espaços em Jaboatão, tirando a vida dos "concorrentes".
Mas é preciso deixar muito claro que não apenas pessoas envolvidas com crimes que perdem a vida para a violência. A disputa pelo domínio do tráfico de drogas também tira a vida de inocentes no Grande Recife. Na Ilha de Itamaracá, dois episódios trágicos ocorridos em fevereiro tiveram forte repercussão. E demonstraram o tamanho da insegurança no Litoral Norte.
No dia 17 daquele mês, o bebê Gael Lourenço França do Carmo, de apenas nove meses, foi assassinado com um tiro em casa, na comunidade da Biquinha, no bairro do Pilar. Criminosos chegaram atirando no imóvel. A mãe, de 22 anos, e a avó do bebê, de 35, também foram baleadas, mas sobreviveram.
As investigações da polícia indicaram que o alvo era um tio do bebê, mas ele não estava na residência.
Cinco dias depois, em vingança à morte do bebê, outro crime semelhante foi registrado no bairro. Criminosos armados derrubaram a porta de madeira e invadiram uma residência atirando nos moradores. Três crianças foram baleadas. Jackson Kovalick Dantas Silva, de 10 anos, morreu na hora. Os irmãos, de 7 e 12 anos, foram socorridos e encaminhados para o Hospital da Restauração, no Recife.
Um adolescente de 17 anos, apreendido pela Polícia Militar, confessou que fazia parte do grupo que atirou nas três crianças. A ordem teria sido dada de dentro de um presídio.
A misoginia também segue fazendo vítimas no Grande Recife. Das 11 mulheres mortas a tiros até o começo de junho de 2024, dois casos foram registrados pela polícia como feminicídio. Ambos os crimes ocorreram em residências.
A diarista Ana Carla Cesar Melo, 44 anos, entrou para as estatísticas. O corpo dela, com uma toalha na boca, foi encontrado no chão do quarto onde ela morava, no Alto do Pascoal, bairro de Água Fria, Zona Norte do Recife, no dia 7 de maio. O laudo indicou que a morte foi por esganadura.
No dia seguinte, a polícia prendeu o companheiro dela, Keiko Marques dos Santos, 32. Ele disse ter cometido o feminicídio porque estava com "ciúmes".
O casal morava no imóvel havia um mês. Amigos da vítima, que não quiseram gravar entrevista, relataram que a diarista vivia em um relacionamento abusivo, marcado por discussões e agressões.
Apesar da gravidade dos números, a gestão da governadora Raquel Lyra preferiu o silêncio em relação ao alto número de pessoas baleadas e mortas em residências da Região Metropolitana do Recife.
A coluna Segurança solicitou à Polícia Civil de Pernambuco um porta-voz, mas a assessoria disse que não seria possível.
Já a comunicação da Secretaria de Defesa Social (SDS), por meio de nota, alegou que "desconhece a metodologia do Instituto Fogo Cruzado".
"A SDS reforça que trabalha com os registros dos boletins de ocorrência no Estado e, a partir deles, são realizadas análises das estatísticas criminais norteando o trabalho das polícias", disse o texto enviado pela secretaria.
É importante destacar que, apesar de a SDS informar que desconhece a metodologia, diretoras do Instituto Fogo Cruzado apresentaram detalhes de como os dados são coletados e analisados, durante visita à sede da secretaria em maio de 2022.
No ano passado, uma das diretoras do Instituto Fogo Cruzado voltou ao Recife e participou de um seminário sobre segurança pública promovido em parceria com o Gajop. Na ocasião, representantes da SDS participaram do evento - incluindo a ex-secretária estadual, Carla Patrícia Cunha.
O Fogo Cruzado é reconhecido nacionalmente e tem os dados utilizados pelos principais veículos de imprensa do País. Em 2021, o instituto conquistou o 2º lugar na categoria justiça e cidadania do 18º Prêmio Innovare, que destaca iniciativas que contribuem para o fomento da cidadania brasileira. No ano anterior, também recebeu o 8º Prêmio República de Valorização do Ministério Público Federal.