Por Ricardo Leitão, em artigo para o Blog de Jamildo
Estima-se em 5 milhões a população indígena que habitava o Brasil em 1500, quando por aqui aportaram as caravelas de Pedro Álvares Cabral. Séculos depois de guerras, escravidão, contaminação por doenças de brancos, os primeiros brasileiros foram reduzidos a 200 mil, durante a ditadura de 1964. Alguns povos terminaram limitados a remanescentes, como os tupis-guaranis que ocupavam o litoral em 1500. Outros, a exemplo dos ianomamis, da floresta amazônica, foram quase dizimados por envenenamento dos rios pelo mercúrio usado nos garimpos ilegais.
A política anti-indigenista do desgoverno de Jair Bolsonaro só agravou, severamente, uma situação que chegou a ser denunciada como genocídio. O ex-presidente desmontou e esvaziou o Ibama e a Funai, enquanto orientava sua base no Congresso a aprovar leis que facilitaram o contrabando de madeira e a invasão de terras indígenas por milhares de garimpeiros. Um de seus ministros do Meio Ambiente foi investigado por envolvimento com contrabandistas de madeiras nobres da Amazônia. O próprio Bolsonaro, em um de seus delírios, acusou os indígenas de responsáveis pelos incêndios nas florestas.
O atual Governo Federal refundou o Ibama e a Funai, reforçou suas estruturas e ampliou a presença da Polícia Federal e das Forças Armadas na maior floresta tropical do mundo. Já existem avanços, mesmo discretos, a registrar. No Congresso, contudo, a vitória por enquanto é dos bolsonaristas. No dia 27 de setembro o Senado aprovou, por 43 votos a 31, projeto de lei que cria marco temporal para demarcação de terras indígenas.
O texto já havia sido aprovado pela Câmara dos Deputados, por 283 votos a 155. Uma semana antes da votação no Senado, o Supremo Tribunal Federal decidira que o marco temporal era inconstitucional.
Os bolsonaristas pretendem, com o marco temporal, que a demarcação dos territórios indígenas respeite as áreas ocupadas pelos povos originários até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. O entendimento do STF é contrário: a Constituição assegura aos indígenas direitos sobre as terras que historicamente sempre ocuparam, inclusive após a promulgação da Constituição.
Por diversos motivos, o marco temporal limitado a 1988 interessa a posseiros e grileiros de terras indígenas. Não por acaso, conta com a ferrenha defesa dos bolsonaristas na Câmara dos Deputados e no Senado. O texto seguiu para o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que pode vetá-lo ou sancioná-lo. É provável que vete.
O projeto de lei não é apenas uma ameaça aos povos indígenas em decorrência do marco temporal. Ele também incorpora alarmantes mudanças na legislação, como a possibilidade de a União retomar terras indígenas já demarcadas; destiná-las à reforma agrária; validar posses ou títulos de particulares em terras indígenas demarcadas; permitir contratos entre indígenas e empresários para exploração econômica de terras indígenas e autorizar o contato com povos isolados, hoje rigorosamente vetado pela Funai.
Caso Lula vete o texto, integral ou parcialmente, o projeto de lei retorna ao Congresso, que pode derrubar a decisão do presidente. Assim ocorrendo, o assunto volta ao STF. Não há prazo para a deliberação final dos ministros do Supremo.
A defesa do marco temporal foi feita no Senado pelo senador Marcos Rogério, um dos líderes do bolsonarismo no Congresso. Ele contou com o apoio da extrema direita, da direita, da bancada ruralista, da bancada evangélica e da oposição. São legendas que formam uma sopa de tendências, cujos integrantes, de tão inconscientes sobre o que votaram, podem até ter confundido marco temporal com algum equipamento para medição de temperatura.
Estão juntos por um motivo comum: derrotar a esquerda, os progressistas e o governo Lula em suas tentativas de avançar em conquistas civilizatórias.
A defesa das terras dos povos originários é uma das batalhas que se travam diariamente no Parlamento. Outras virão, como a manutenção da legislação dos casamentos homoafetivos, o uso medicinal de derivados da maconha, a ampliação dos direitos da mulher ao aborto e a restrição do uso de armas pela população.
São pautas bolsonaristas, impulsionadas de volta ao debate, dentro da chamada agenda de costumes. O objetivo não é vencer ou perder as votações, mas forçar a polarização esquerda x direita, conveniente a Bolsonaro, na sua tentativa de se manter na liderança da direita.
Nessa conjuntura, o futuro dos povos indígenas é mais um ponto de clivagem. O censo do IBGE de 2022 informa que há 1,5 milhão de brasileiros que se dizem indígenas ou descendentes. São os que ainda habitam as florestas e os que se transferiram para áreas urbanas. Há uma ministra, parlamentares e prefeitos indígenas. Apesar do quase extermínio, conseguiram manter vivos seus idiomas, tradições, cultura e religiões. A luta contra o marco temporal é a principal luta de agora, uma luta ancestral pela sobrevivência dos primeiros brasileiros.