Hoje é dia de ampliar o alcance da literatura, e vislumbrar o país de leitores que podemos ser. Em turnê de lançamento do novo livro, “Salvar o fogo”, publicado pela editora Todavia, o escritor Itamar Vieira Junior estará no Recife, nesta quinta-feira, na Livraria Leitura do Riomar Shopping, a partir das 19h. Como a popularidade do autor é conhecida, depois de vender mais de 700 mil exemplares do premiado “Torto arado”, serão distribuídas senhas para autógrafos na própria livraria, a partir das 9 horas da manhã.
Nesta entrevista ao JC, o vencedor dos prêmios Leya, Jabuti e Oceanos fala sobre a diferença entre os dois romances, a realidade e a imaginação no processo de criação, a leitura da realidade nacional através dos livros, a mudança que equilibra a posição da mulher no cenário editorial, o impacto dos concursos literários na vida de um escritor, a relação necessária entre cultura e educação – lembrando que mais leitores implica em melhor qualidade de vida.
JC - A história de "Torto Arado" começou em Pernambuco, numa versão original que se perdeu. Como você via e vivia a literatura, naquela época?
Itamar Vieira Junior – A literatura fazia parte da minha vida, já naquele momento, com intensidade. Eu era um adolescente bem tímido, e me refugiava nas bibliotecas e livrarias. Quando morei em Pernambuco, em Candeias, Jaboatão, foi no ensino médio, e tive contato com a literatura de autores do Nordeste. Jorge Amado, João Cabral de Melo Neto, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego. Essa literatura me despertou o interesse pela escrita. E foi ali que comecei a escrever uma versão bem antiga, que foi mudando muito ao longo do tempo, de “Torto Arado”.
JC - Como o leitor encontra o autor de "Torto Arado" em seu novo livro, "Salvar o fogo"?
Itamar Vieira Junior – Quem conhece “Torto Arado” e meus trabalhos anteriores, os contos publicados em “Doramar ou a odisseia”, vai encontrar um pouco do autor nessa história. Mas vai encontrar novidades. Acho inevitável que a gente mude com o tempo, amadureça, aprenda com a experiência da escrita e da literatura. “Salvar o fogo” guarda referências com “Torto Arado”, mas guarda a devida distância também. Apesar de um pano de fundo parecido, é uma história diferente. Se em “Torto Arado” as famílias que trabalhavam na Fazenda Água Negra descobriram uma força a partir dos laços de solidariedade, em “Salvar o fogo” essa solidariedade inexiste. É uma comunidade que está envenenada pelas crenças, e que termina hostilizando a si própria. Ao mesmo tempo que há aproximações, há diferenças também.
JC - O real e suas alternâncias, em variações que parecem reforçar o destino, podem ser lidos em “Salvar o fogo”, como “um rio que corre para o lugar de sempre”. A vivência da realidade é crucial para a reescrita e o compartilhamento de interpretações? O que pauta o escritor?
Itamar Vieira Junior – Independente do momento em que escreva, todo escritor dá um testemunho do seu tempo e da sua história. Cada um vai falar a partir do seu lugar. Esse é o testemunho do meu tempo. Fazer uma leitura que é muito particular, mas também coletiva, daquilo que faz parte da nossa história enquanto brasileiros. Claro que é a minha leitura apenas, limitada diante do todo. Mas ainda assim, é o que me move, pelo menos nesse momento. Todas as histórias tentam se equilibrar entre realidade e imaginação. A realidade é movida pela minha imaginação e pela imaginação do leitor.
JC - Além da abertura para a imaginação e para a trama que se desenvolve no livro, você escreve para que o leitor possa captar a realidade do Brasil?
Itamar Vieira Junior – Sim. Temos uma história bastante complexa. Há uma bibliografia vasta sobre a nossa história, inclusive a atual, que vem sendo reescrita por autores da contemporaneidade. Mas a literatura possui a capacidade de nos dar uma visão subjetiva. Porque a escala muda. Enquanto a História com h maiúsculo fala dos grandes eventos, das mudanças em curso, a literatura pode falar sobre tudo isso, mas a partir da escala do humano, individual. A partir dessa história individual vamos conhecer o coletivo de um lugar, de uma sociedade, de um país. A leitura permite um olhar mais abstrato, porque mexe com sentimentos e subjetividades que às vezes não estão nos livros de História. A gente vai aprendendo com as subjetividades das personagens. É ficção, mas ainda assim pode falar sobre eventos importantes, e sobre os sentimentos das personagens que foram afetadas por eventos históricos.
JC - Como Luzia e sua mãe, em “Salvar o fogo”, as personagens femininas, suas lutas e dores, têm tido maior relevância na literatura brasileira contemporânea. Assim como as mulheres conquistam espaço no mercado editorial. Como observa esses movimentos paralelos?
Itamar Vieira Junior – Há uma mudança a caminho. Tem muito mais mulheres publicando, sendo notadas pelos prêmios. No último Prêmio Jabuti, as finalistas eram cinco mulheres, na categoria romance. É uma luta antiga, chegou o momento de colher os frutos. Vivemos um período em que a gente está revisitando a história. E a história tida como oficial foi narrada e contada por homens, incluindo as personagens homens. Cada vez mais as mulheres conquistam esse espaço. Talvez isso signifique um equilíbrio. A consciência de que é impossível chegar à totalidade de uma sociedade se a gente despreza um segmento importante, que na nossa sociedade é a maioria. O mercado editorial está atento – mas não por boa vontade, tem sido provocado por leitores e pelas próprias escritoras. Toda a história colonial e escravagista que vivemos, que ainda reverbera em nosso cotidiano, é dos homens. Projetada e executada pelos homens. As mulheres assumirem neste momento o protagonismo histórico é devolver um pouco aquilo que foi usurpado pela história. Percebo que as coisas caminham nesse sentido.
JC - “A vida na Tapera girava em torno das desavenças, das mentiras e dos desencantos que foram minando toda a história que tínhamos em comum”. Esse trecho de “Salvar o fogo” pode ser transportado para o cenário das redes virtuais, que por sua vez afeta a realidade, deturpando-a?
Itamar Vieira Junior – Muitas comunidades na nossa história foram atravessadas por exploração alheias a elas. Essa comunidade em particular viveu sob a sombra da Igreja. Assim desenvolveu sentidos que eram exteriores a sua experiência. A imposição de outros valores e crenças muda o sentido das coisas. Aqueles que não foram evangelizados, que não se adequaram a esse novo modo de vida, ficaram à margem. De alguma maneira a religião dividiu eles. Podemos transmutar essa ideia para o que vivemos hoje no Brasil. Não só quando diz respeito à religião, mas também à política, que tem nos segregado. Já tínhamos dificuldade, hoje ainda mais, de nos olharmos como um povo único, um país que quer caminhar numa mesma direção. Essa frase poder ser lida como uma alegoria das coisas que nos dividem.
JC - Você já escrevia desde criança. Como a literatura deve ser estimulada na infância, tanto para a leitura, quanto para a escrita? Muito se fala em formação de leitores no Brasil. A educação para a leitura, se tem início na idade escolar, é garantia de um adulto leitor?
Itamar Vieira Junior – A gente não pode dissociar literatura, cultura, de educação. Investir em cultura é investir em educação. A cultura cuida de dimensões da vida que a educação, sozinha, não é capaz. O estímulo à leitura desde a primeira infância passa pela escola, claro, mas passa também pela família, por ações de Estado, de fortalecer políticas públicas que não deixem ninguém de fora do aprendizado que a leitura pode proporcionar. Todos devem ter direito e acesso aos livros. Há os que não dispõem de recursos, e o Estado precisa olhar por esses. Fortalecer as bibliotecas públicas, das escolas públicas, investir na aquisição de livros, para pessoas que infelizmente ainda não podem adquirir, por falta de recursos. A formação de leitores passa por várias instâncias. E não deve ser vista como uma política derivada da necessidade de educar. Faz parte desse projeto maior que chamamos de educação. É preciso investir muito. Um país leitor tem uma sociedade informada, que não se dobra a mentiras, a fake news. É uma sociedade que planeja e projeta melhor seu presente e seu futuro. Se a gente for olhar o ranking de países leitores, vai ver que a leitura está associada a um nível de educação melhor, e a uma qualidade de vida melhor também.
JC - Os concursos literários revelaram o escritor Itamar Vieira Junior para você mesmo? Como a participação em concursos pode mudar a vida de um autor?
Itamar Vieira Junior – Como sou um autor do Nordeste, longe dos centros e das grandes editoras, restava a mim saber se o que eu escrevia tinha valor literário enviando meus originais para concursos. Para toda e qualquer pessoa que queira escrever, essa pode ser uma excelente porta de entrada, para começar a publicar seus textos. Ou começar a aprender com eles também. O fato de vencer ou não vencer pode não significar muita coisa. Não deve significar, por exemplo, que caso a gente não vença não deva publicar. Escrever também demanda tempo. A gente amadurece, aprende com o tempo. Para mim se revelou um caminho, porque me deu oportunidade de publicar. Não só “Torto arado”, mas também os meus dois livros anteriores foram publicados por conta de editais. Devemos provocar para que haja mais editais, os órgãos públicos, as secretarias de cultura, o ministério da cultura, façam isso com mais frequência. Recentemente lançaram um importante, em homenagem a Carolina Maria de Jesus, voltado só para mulheres. É uma iniciativa importantíssima. As secretarias estaduais também devem estar fomentando a escrita. Apenas dessa maneira a gente vai criar um público leitor, e ajudar na formação de novos autores. Isso é importante para o país. Nossa literatura ainda é pouco traduzida, merece um espaço melhor. Precisamos criar mecanismos e políticas públicas para garantir que isso seja possível. E a melhor maneira para se publicar é com os concursos e prêmios voltados para obras inéditas e o trabalho de autores iniciantes.
JC - Autor de um livro com mais de 700 mil exemplares vendidos, premiado internacionalmente e uma das vozes mais importantes da literatura brasileira contemporânea. O que a escrita lhe proporciona?
Itamar Vieira Junior – Me proporciona sentimentos que têm muitas camadas. Primeiro, no próprio ato de escrita. Porque quando escrevo, estou aprendendo sobre mim, sobre o outro, o meu país, a condição humana. Depois, com os leitores, aprendo muita coisa. Porque eles interpretam, trocam informações comigo não só sobre a leitura dos meus livros, mas de outros livros. Frequentar eventos literários, compartilhar e conversar com leitores é sempre uma experiência rica. Além disso, como leitor, aprendo muito. Para mim que já passei por universidade, fiz pós-graduação, tanta coisa, é uma maneira de continuar ativo, lendo, pensando e refletindo meu país. No fundo, criei uma comunidade de trocas, porque os leitores me permitem essa troca de conhecimento.
JC - O que podemos esperar da literatura, Itamar?
Itamar Vieira Junior – A literatura não tem uma função definida. Nós que vamos dando sentido a ela, como toda arte. A gente sabe que ela é importante, e não fomos nós que criamos. A arte de contar histórias já está aí há milênios, desde as pinturas rupestres nas cavernas. Faz parte da condição humana. Vejo grande significado na literatura. Ela permite que a gente viva experiências que não são as nossas, que a gente se coloque no lugar do outro, do diferente, daquele que muitas vezes não compreendemos. A partir da literatura podemos compreender. A literatura é um portal de possibilidades, para sentimentos, dores e amores, mas também para valorizar culturas que não são nossas, lugares que não são nossos. A gente lê sobre o diferente, e descobre que ele não é tão diferente assim. Compartilhamos muita coisa. Todo mundo sofre, todo mundo ama, adoece, nasce e morre. A literatura ensina.