O último dia 12 março poderia ter sido apenas de mais um plantão na rotina da socorrista Laura Cristina Cardoso, do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), da cidade de São Paulo.
No entanto, a equipe acionada para o atendimento de um homem de cerca de 90 anos acamado, com sequelas de acidente vascular cerebral (AVC) e outras comorbidades, se viu diante de uma situação difícil que atinge grande parte dos profissionais de saúde no Brasil: o racismo.
“Entro no quarto onde está a vítima e uma senhora que meio desesperada grita: ‘E agora, filho? Ela é negra”. No que ele respondeu: “Tudo bem, mamãe. Ela está usando luvas”, contou a enfermeira em um relato nas redes sociais.
“A vítima foi devidamente atendida pelas minhas mãos negras enluvadas e deixada aos cuidados do hospital privado que a família preferiu”, relata a socorrista na publicação. Na publicação, Laura destaca o valor da resiliência ao afirmar que o melhor tratamento possível foi destinado ao paciente por que “quem eles são não muda quem eu sou”.
“A vítima foi devidamente atendida pelas minhas mãos negras enluvadas”, disse a socorrista Laura Cristina Cardoso, ao centro / Reprodução/Facebook
Casos como o de Laura não são incomuns no país. Dados do Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo e da Articulação Nacional da Enfermagem Negra apontam que a maior parte dos enfermeiros e técnicos em enfermagem que se declaram pretos ou pardos já sofreu ou percebeu algum tipo de ato discriminatório.
Dentre os que trabalham em São Paulo, onde a socorrista do Samu foi vítima, 64% dos enfermeiros e técnicos em enfermagem entrevistados relataram que já perceberam racismo na unidade de saúde onde trabalham e 55% disseram que a discriminação veio dos pacientes.
Um outro estudo, realizado em Ribeirão Preto, com 182 pessoas, revelou que 71,54% delas perceberam, em algumas situações, ter sofrido discriminação racial em serviços de saúde.
“Em uma turma de 100 pessoas, eu era a única estudante negra”, conta a professora Silvia Maria Santiago, da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “O espaço para que a questão do racismo fosse discutida no meu tempo, 40 anos atrás, era completamente diferente do que a faculdade está sendo obrigada a responder neste momento”, afirma.
Além de lecionar no curso de medicina da Unicamp, Silvia também atua como diretora-executiva de Direitos Humanos da universidade. Segundo ela, a persistência do crime de racismo no Brasil está associada a causas multifatoriais.
“Essa é uma mazela que acho difícil a gente se livrar se não mudarmos radicalmente o valor das vidas. Enquanto as vidas tiverem diferentes valores na sociedade, nós vamos ter sempre o racismo presente”, afirma. “Nós temos na sociedade brasileira ainda uma identificação do negro como um humano não tão humano quanto o branco. Existe uma diferenciação de qualidade de vida, de valor da vida de um e de outro de uma sociedade que não aceita a diversidade”, completa.
A professora avalia que por trás dos casos de racismo também há uma desconfiança infundada sobre a capacitação dos profissionais negros em comparação com o suposto desempenho de especialistas brancos.
“Eu sou médica e tem o caso em que o próprio paciente muitas vezes esperou meses pela consulta e se decepciona quando vai ser atendido e o médico ou a médica são negros, por vários motivos. Há uma inconformidade no sentido de entender que aquele profissional pode ser tão competente quanto um profissional branco ou mais”, diz Silvia.
Vítima de racismo quando atuava em uma clínica da família na Zona Oeste do Rio de Janeiro, a enfermeira Júlia Carvalho da Silva, 27, relata que teve questionada a sua capacidade como profissional.
Estava no consultório de atendimento e, no momento em que eu precisei sair da sala para pegar uma impressão na administração, uma das pacientes de alguma urgência, quando me viu, me olhou de cima a baixo e falou para a amiga do lado acreditando que eu não iria escutar: ‘essa escurinha aí que vai me atender?’
No fluxo de demandas do dia, a paciente foi designada para atendimento pela enfermeira. Júlia conta que embora a situação tenha sido desconfortável ela não manteve uma postura de enfrentamento.
“A minha reação nunca foi essa de combate, eu preferi sempre mostrar o contrário, eu acho que essas pessoas são muito pobres de informação, elas pensam muito pequeno. Então, eu achei que a melhor forma de responder à ofensa dela, querendo ou não é uma ofensa, o preconceito dela, foi atendê-la da melhor forma que eu podia”, afirma.
Segundo a enfermeira, situações de racismo no ambiente de trabalho podem se apresentar de diferentes maneiras – algumas mais discretas, outras mais evidentes, como neste caso. Ela afirma que, no caso dos profissionais da saúde, o cabelo ainda é alvo de comentários racistas, seja em relação ao estilo black power ou no uso de tranças.
“É possível enfrentar esse problema social de saúde pública com informação e também com mudanças no vocabulário. Ainda se utiliza muitas frases racistas e precisamos problematizar isso, em vez de romantizar. Acho fundamental, ainda, termos representatividade nas instituições”, ressalta.
Em 2017, a Unicamp adotou um sistema de cotas étnico-raciais que reserva 25% das vagas disponíveis para candidatos autodeclarados pretos e pardos. De acordo com a professora Silvia Maria Santiago, a medida tem provocado mudanças no perfil dos estudantes da instituição, em especial no curso de medicina, que passou a contar com mais alunos pretos.
“Em uma aula de dermatologia, os livros trazem as lesões de pele em pessoas brancas. Os alunos perguntam ao professor como a lesão aparece na pele negra. Eles estão tensionando o ensino de várias doenças em como elas se manifestam em negros. A faculdade está precisando responder a isso”, diz.
A professora da Unicamp avalia que o tema do racismo ainda é pouco debatido durante os cursos de graduação da área da saúde. Ela relata, por exemplo, que uma das dificuldades enfrentadas por estudantes negros do curso de medicina da Unicamp foi participar de aulas de anatomia que contavam com a manipulação de cadáveres não reclamados ou doados para estudos, que são em sua maioria de pessoas negras.
Em reflexão sobre o problema, a 59ª turma de medicina da Unicamp e o Coletivo Quilombo Ubuntu realizaram uma cerimônia, no dia 8 de abril, em homenagem aos cadáveres negros do Laboratório de Anatomia do Instituto de Biologia. O evento contou com atividades culturais, debates e a inauguração de uma placa.
“O que efetivamente combate o racismo é ter o negro presente em todas as instâncias da sociedade. Tenho certeza que daqui alguns anos universidades como a Unicamp que é essencialmente branca, mas começa a ficar cada vez mais mesclada, serão muito menos racistas, mais diversas e mais plural. Para que isso aconteça, precisamos de políticas públicas”, ressalta.
Evento na Unicamp homenageia cadáveres negros do acervo do Laboratório de Anatomia / Foto: Antonio Scarpinetti/Unicamp
A médica Mariangela Sousa Vaz, 45, ginecologista e obstetra de Cotia, no interior de São Paulo, conta que um dos casos mais marcantes de racismo aconteceu durante a faculdade de medicina. Formada pela Unicamp, Mariangela relata o ocorrido no período do internato, etapa da graduação que permite a vivência mais próxima com o atendimento clínico.
“Estava no sexto ano e iria acompanhar um caso no consultório da faculdade com duas outras internas, uma loira e a outra japonesa. Assim que o professor entrou, ele meio que foi me empurrando para fora da sala – eu estava de avental, falando que o acompanhante não poderia ficar dentro da sala. Das três, por que motivo ele achou que eu era a acompanhante?”, conta a médica.
Mais tarde, já no primeiro emprego, Mariangela foi surpreendida por outra situação constrangedora, desta vez em um refeitório, causada pelo diretor do hospital.
“Acho que ele não acreditava que eu era médica, ele me tratou muito mal no refeitório, na frente de todo mundo. Gritou comigo, dizendo que eu não podia guardar lugar e perguntando se eu sabia quem era ele. Estava com outros amigos médicos e respondi que uma amiga estava sentada ao meu lado. As pessoas nunca achavam que eu era médica”, diz.
Formada há 22 anos, a médica avalia que embora o número de negros e negras nos cursos de graduação em medicina ainda esteja abaixo na comparação com os alunos brancos, o cenário atual tem apresentado mudanças graduais.
“Nós estamos começando a ocupar postos melhores, a ganhar um pouco mais e ter uma formação melhor, mas é algo que vai ser trabalhado a longo prazo. O racismo tem que ser combatido por nós, como temos feito a partir da criação de movimentos que juntam as forças, mostrando que todos somos iguais e podemos chegar onde quisermos”, destaca.
“As pessoas nunca achavam que eu era médica”, diz ginecologista e obstetra Mariangela Sousa Vaz / Acervo pessoal
Um estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) apontou que a população negra está mais exposta à precarização das relações de trabalho, ganha menos, tem menos cargos de direção e foi mais atingida pela perda de vagas durante a pandemia. O levantamento divulgado em novembro de 2021 mostrou que 60% dessa população ainda não conseguiu voltar ao mercado de trabalho durante a pandemia.
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que negros e negras são minoria nos cargos de liderança. De acordo com o levantamento, menos de 3% de mulheres e homens negros alcançam cargos de diretoria ou gerência no Brasil.
Outra pesquisa, realizada pelo portal “Vagas.com”, apontou que a maioria dos pretos e pardos ocupam cargos operacionais (47,6%) ou técnicos (11,4%). Enquanto os cargos de diretoria, supervisão ou coordenação e postos sêniores contam com uma parcela mínima dessa população. Nos cargos de diretoria, apenas 0,7% dos profissionais eram pretos ou pardos.
De acordo com os especialistas, a ausência ou escassez de pretos e pretas em determinadas posições no mercado de trabalho contribui para a reprodução de discursos racistas. Nesse sentido, eles defendem que a representatividade, com uma maior participação dessa população em variados âmbitos da sociedade, pode ajudar a reduzir os casos de racismo.
O enfermeiro e professor da Universidade Paulista (Unip), Roudom Ferreira Moura, conta que já enfrentou diversas situações de racismo ao longo da vida. Um dos episódios mais marcantes e recentes aconteceu em uma unidade de saúde onde ele fazia supervisão de uma disciplina com estudantes de enfermagem.
“Estava tirando algumas dúvidas e questionando os alunos sobre as questões técnicas práticas quando, do nada, surge um enfermeiro da própria unidade básica de saúde, olha para os alunos e pra mim e fala, ‘gente, olha que engraçado, todos vocês são brancos mas o professor de vocês é moreno'”, relata.
O professor conta que naquele momento ficou sem reação, assim como os alunos, e que, passado o choque, se perguntou se o mesmo teria ocorrido se fosse um professor branco lecionando para alunos negros.
“O fato de ser um professor universitário que estava ali com os alunos que eram brancos e, ao contrário da cor dos alunos, eu sou negro, incomodou o enfermeiro e trouxe essa reflexão ‘olha que engraçado, isso não é natural, não é comum, não está no imaginário social’, né. De se ter um professor universitário que é preto, que está trazendo reflexões, questões de aprendizagem e de ensino para alunos brancos”, afirma.
Desde 2015, o especialista atua no estudo das diferentes formas de racismo, como o estrutural e o institucional. Enquanto o primeiro destaca a formação da sociedade com base na inferioridade do negro – com todas as consequências negativas sobre isso, o segundo se manifesta nas estruturas de organização da sociedade e nas instituições, o que inclui o Sistema Único de Saúde (SUS).
“Existe no imaginário social que o nível superior pertence aos brancos, isso traz alguns problemas. Conheço amigos médicos que, por serem negros, as pessoas subestimam, interrogam: é médico mesmo? Por que no imaginário social médico é branco“, diz Moura.
Para o especialista, o Brasil, que conta com maior parte da população negra ou parda segundo dados do IBGE, ainda convive com esse tipo de discriminação por conta de resquícios do contexto histórico do país.
“No Brasil, tivemos uma escravidão que durou quase quatro séculos cuja situação tem se perpetuado até hoje. Mulheres e homens negros ainda sofrem com a marginalização no mercado de trabalho, nas universidades e outros setores sociais”, completa.
Os impactos do racismo para a população negra vão além da perpetuação da desigualdade social e econômica. Segundo Moura, o racismo também contribui para a piora nos indicadores de saúde de grande parte dessa população, gerando iniquidades e levando ao adoecimento e à morte.
“Quando estudamos a determinação do processo entre saúde e doença, entendemos que o racismo é um dos determinantes que vai desencadear, nesse processo, mais doença no indivíduo. O preto, periférico e pobre, por exemplo, está em ambientes desfavoráveis, que propiciam mais doenças infectocontagiosas, mas também está mais suscetível ao desenvolvimento de doenças crônicas pelo ambiente em que vive”, diz.
O professor avalia que as ações afirmativas são políticas públicas que contribuem para o enfrentamento do problema. Para ele, o sistema de cotas raciais e sociais nos vestibulares e nos concursos públicos pode fazer com que as desigualdades sociais e econômicas sejam reduzidas ao longo do tempo.
Diante de uma situação de urgência ou emergência, caso o profissional vítima de racismo ou injúria racial negue atendimento, o ato pode ser considerado Omissão de Socorro. A recomendação dada pelos conselhos é realizar o devido atendimento e registrar o ocorrido no prontuário e, em seguida, proceder com as medidas administrativas e judiciais cabíveis.
“Apesar de o Direito Penal ser um instrumento insuficiente para o enfrentamento de crimes raciais, o Supremo Tribunal Federal entendeu recentemente que o crime de injúria racial é espécie do gênero racismo. Portanto, é imprescritível, conforme o artigo 5º, XLII, da Constituição. Assim, hoje, quem comete qualquer ato discriminatório pode ser enquadrado nos crimes de racismo ou injúria racial”, explica o advogado Marcus Vasconcelos.
O especialista atua no escritório Alves, Cavalcanti, Maia e Vasconcelos, em Maceió, Alagoas, formado exclusivamente por profissionais pretos e pretas. Ele explica que no caso da socorrista Laura Cristina Cardoso, mãe e filho responsáveis pelos atos discriminatórios podem responder pelo crime de injúria racial.
O crime é previsto no Código Penal e estabelece punição de 1 a 3 anos de reclusão e multa para quem ofende a dignidade de outra pessoa utilizando elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, entre outros. Consistindo, assim, ataque à honra ou à imagem e violação de direitos constitucionais.
Diferente do crime de racismo, previsto na Lei 7.716/1989, que ocorre quando a pessoa do agressor atinge um grupo ou coletivo de pessoas, discriminando uma etnia de forma geral. Assim, no crime de racismo, a ofensa é contra uma coletividade, por exemplo, toda uma raça, não há especificação da vítima.
O advogado explica que em caso de injúria racial, a vítima pode registrar um boletim de ocorrência em delegacia comum ou especializada em crimes raciais e delitos de intolerância.
“É importante mencionar também que a assistência por meio da advocacia é imprescindível para que se apresente queixa-crime, e assim, haja um processo criminal. Também é recomendável que a vítima identifique possíveis testemunhas e anote os seus contatos para que sirva de prova no processo, inclusive de dano moral”, explica Vasconcelos.